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Monolux

Autor: Eucanaã Ferraz

Em Monolux, deparamos, de imediato, com uma “memória da fotografia”.  A série compõe-se de imagens conseguidas sem câmera, retornando assim aos fotogramas de William Talbot, o pioneiro inglês que, na primeira metade do século XIX, criara imagens por contato: folhas, plumas ou rendas eram colocadas sobre papel sensibilizado quimicamente que, a seguir, era exposto à luz do sol, criando-se então um fundo escuro com a silhueta branca do objeto. A técnica seria reapropriada pela vanguarda do século XX, quando Man Ray deu a ela o nome de rayograph.

Vicente de Mello retoma o procedimento, dando a ele um caráter pessoal. Em vez de arranjos estritamente formais ou de avizinhamentos aleatórios, cria “relâmpagos narrativos”. Iluminações. Imagens que, não sendo literárias, ou literais, guardam fragmentos narrativos em sua origem, reduzidas ao mínimo, à condição de peças de um jogo. Especificamente, de um jogo da memória. Assim, a história da fotografia conta-se (sem ser contada) pela técnica, mas também pelo universo material arregimentado: todo um instrumental analógico, como filmes, câmeras, slides, projetores, visores, álbuns.

A história da arte também está largamente à vista. Os pontos de partida podem ser uma pintura de Caravaggio, os célebres cortes de Lucio Fontana, uma gravura de Gilvan Samico, a icônica América invertida de Joaquín Torres García, ou, mais próximos do universo pop, os recortes “matissianos” de Saul Bass para a abertura do filme O homem do braço de ouro. Tais referências são convertidas em matéria viva, reinventadas pela linguagem. É assim que, por exemplo, o traje negro da amazona de Manet tem revelado seu potencial de mancha, de matéria, graças a uma operação que é a um só tempo imaginativa e crítica.

Nessa memória da arte destaca-se a arquitetura – marcante na poética de Vicente de Mello –, presente nas colunas do MAM-RJ ou do Palácio da Alvorada, nas vistas aéreas do Parque do Ibirapuera ou da Esplanada dos Ministérios.

Tudo isso, no entanto, é história pessoal, pois a matéria está sempre atravessada pela subjetividade. Monolux realiza uma sensível e lúdica museografia do cotidiano que, historicamente, remonta ao ready made. Assim, os monogramas são montados com vários objets trouvés: pedaços de barbante, esquadro, molduras de slides, porta-retratos, pião, penas, tampas de garrafa, trenas, estilete, etc. Nessas incursões autobiográficas, Milton/Notlim talvez seja a mais emocionante, na qual Vicente fotografou os quatro nós de aço que amarravam o esterno de seu pai desde uma cirurgia cardíaca em 1982. Trata-se de uma espécie de museografia livre, divertida, pessoal, delirante mas rigorosa, como se o fotógrafo descobrisse em seu trabalho o gosto do trabalho manual, ou ainda, corporal, que vai em direção aos mais complexos mecanismos da memória.

Nesse chiaroscuro, o fundo negro absoluto sugere a escuridão cósmica, infinita (conforme O vazio de Eridano), mas também a noite do inconsciente, do esquecimento, do vazio em nós; do negror, porém, emerge o branco pleno, compondo – e composto por – matérias que já não são os corpos das coisas, mas a lembrança deles; memória, portanto, de uma presença, agora, gravada em luz.

Fiat Lux.

Autor: Frederico Coelho

Fiat Lux. Não há outra expressão que possamos pensar quando entramos no Deserto do Céu, exposição de Vicente de Mello e Tomás Ribas. “Fazer luz” é a proposta desses dois artistas que traçam essa parceria mais do que afinada. Mas a luz de Vicente e Tomás não nasce pela paleta de um pintor, nem surge através de esculturas, objetos luminosos ou ambientações de claro e escuro. Há, como nos diz o nome da exposição, a invenção de um lugar. Um deserto em pleno céu, seco e nebuloso, que nos ilude até “o vale da morte” com oásis de cores e miragens de superfícies em movimento.

 

Em um tempo pleno de imagens, olharmos para as obras de Vicente e Tomás cria a possibilidade rara da poesia visual. Não se trata, em absoluto, de dizer que estamos diante de poemas feitos com imagens ou de obras visuais que flertam com a escrita. O que chamo aqui de poesia visual é, forçando o uso do termo, a chance de deixar nossos olhos livres da inércia cotidiana e reinventar sua função. Olhos para ver além e para furar paredes de luzes gasosas.

 

A parceria entre Vicente e Tomás se iniciou no encontro dos artistas para realizarem ações cênicas na peça Deus é um DJ (2011), com direção de Marcelo Rubens Paiva. Os trabalhos de Vicente, uma instalação, e de Tomás, a iluminação do espetáculo, proporcionaram a parceria entre o olhar preciso e inventivo do primeiro e o domínio pleno da técnica de inventar espaços do segundo. Profissionais da luz, tanto o fotógrafo quanto o iluminador são aqui criadores de ambientes que seduzem e enganam nosso olhar.

 

A sala de Vicente é envelopada por uma longa sequência de lambe-lambes com uma única imagem. Seu “Death Valley” nos transporta através das cores para o calor sobre-humano que faz no deserto californiano de mesmo nome. Quando nos localizamos dentre a sensação térmica das cores, percebemos uma vibração eletrônica, uma espécie de ruído vermelho que borra o nosso olhar. A sala nos arremessa em ondas que não nos oferecem estabilidade, mas vertigem. Tais sensações ganham impacto ainda maior após ficarmos imersos em um jogo de luzes e cores, em que as imagens, que parecem apenas um fundo estático e caótico, ganham leveza, ritmo, cadência. A luz reinventada no contato com os jogos de contrastes bolados por Vicente nos mostra toda a sua habilidade de fotógrafo em perceber as matizes e combinações infinitas de cores e luzes, proporcionando uma hipnose poética do olhar.

 

Tomás, por sua vez, nos dá a verticalidade do espaço. Se, na sala de Vicente, nossa vertigem vem da constelação de cores insuspeitas, escondidas nas entrelinhas da imagem de fundo, na sala de Tomás, chegamos à descoberta de que a arquitetura do espaço também pode ser feita através da invenção da luz.  Com suas “Paredes” de vapores iluminados, ele cria fumaças de luzes que se transformam em sólidos blocos de quimera. Ao vermos a dinâmica lúdica da obra, não conseguimos nos descolar da sugestão do artista. Nos sentimos ora comprimidos em espaço mínimo, ora instigados a atravessar o que nos comprime. A luz, aqui, não ilumina somente. Ela cria uma fronteira imaginária que, novamente, apenas o olhar pode enfrentar. São arquiteturas de vazios, construídas através de paredes falsas e móveis, porém plenas de força pelo poder de ilusão que nos oferecem.

 

Em uma terceira sala, os artistas expandem seus trabalhos em novas frentes de experimentação. Se não temos a luz como força cromática, o que vemos nos trabalhos Chamex e Sete Dias são possibilidades instigantes de desdobramento das primeiras salas. Tomás utiliza um material cotidiano (papéis Chamex em formato A4) para, mais uma vez, sugerir a invenção espacial da cor. Como se fossem bólides de Hélio Oiticica, a gradação matemática de cores entre o branco, o azul, o verde, o rosa, o amarelo e o marfim cria uma luminosidade própria. O vazio entre os papéis só aumenta o jogo entre a cor, a luz e o espaço. São pequenas esculturas de cor que pulsam por conta própria. Já em Sete dias, Vicente propõe o uso expandido de seus lambe-lambes, porém aplicando a técnica em uma história em quadrinhos que nos sugere uma outra narrativa para a criação do mundo a partir do paraíso. Como se fechasse um ciclo, o éden desemboca no vale da morte e nos apresenta a solidão de Deus no deserto do céu.

 

 

No livro Asdrúbal trouxe o trombone, dedicado ao grupo de teatro carioca dos anos 1970, seu diretor, Hamilton Vaz Pereira, declara algo que nunca mais esqueci. Em um palco, basta acender uma luz no escuro que toda a atenção da plateia irá para ela. Ou seja, criamos nossa ideia de espaço cênico a partir do que a luz nos disser. É ela que prende nossos sentidos em uma narrativa da cena. Em Deserto de céu, Vicente de Mello e Tomás Ribas subvertem a máxima de Hamilton e mostram que a luz, quando se torna cor e matéria (gasosa), nos ilude, nos desloca, nos seduz. Não há aqui narrativas ou sentidos para além da vivencia da cor e da invenção da luz. Fez-se luz, mas cabe ao público seguir com o processo criativo. É a cumplicidade poética do nosso olhar, iluminado de cores, que poderá completar a beleza desses trabalhos. O que vemos nas duas salas é a fotografia transformando luz em cor, os espaços sendo modulados pela luz espessa, plena de fumaça. Experiências sensoriais que nos provocam o olhar ao primeiro contato. Se estamos em um deserto do céu, que a nossa estrela guia seja a invenção iluminada da cor e do espaço.

Representação e invenção  –

as retículas do olhar

Autor: Marcio Junji Sono

As obras inéditas do fotógrafo Vicente de Mello que compõem Strobo fazem parte da série de imagens digitais Quantas Asas tem um Pixel? O curioso título da série questiona até que ponto a imagem digital pode representar, por um lado, um registro análogo (ainda que não analógico) da realidade e, por outro, uma radical ampliação da liberdade expressiva do fotógrafo. Neste segmento da série, o artista lança, por meio de interferências digitais em oito imagens, novas camadas de significação sobre imagens prosaicas.

 

É uma constante na produção de Vicente de Mello a indagação sobre as semelhanças e distinções entre as percepções suscitadas pela fotografia digital e pela analógica. Para ele, a fotografia digital representa a conquista de uma liberdade há muito desejada desde o advento da fotografia, em 1889; a visualização imediata que permite (não obstante o criticado delay de sua captação) abriu novas possibilidades de diálogo com o tempo presente. Adepto usual da película, Vicente de Mello tem investigado as possibilidades poéticas da fotografia digital tanto em seu aspecto formal quanto discursivo. Strobo pode ser considerada, portanto, uma depuração dessa pesquisa.

 

As fotografias, que sugerem livremente erupções vulcânicas, cometas, explosões astronômicas, bombardeios, rastros de mísseis ou outros eventos bélicos, podem ser interpretadas à maneira dos ensurdecedores disparos de canhões que irrompem na Abertura 1812, Op. 49, de Tchaikovsky. Composta em 1880, a obra rememorava a vitória russa sobre Napoleão violência sonora celebra, ali, ao mesmo tempo um triunfo e um aniquilamento.

 

O nome da série é uma alusão ao efeito lisérgico e hipnotizante das luzes feitas para dançar. Por outro lado, o contraponto criado pela sugestão de cataclismos assinala um questionamento sobre o binômio pulsão da vida versus tragédia das guerras, inscrito em uma trajetória luminosa no espaço. A partir de referências reais – registros de simples queimas de fogos de artifício–, as interferências do artista geram imagens capazes de sugerir tanto fenômenos espaciais quanto ataques militares, imagens capazes de emular tanto momentos de destruição quanto de criação.

 

Paralelamente às questões abertas pela interpretação dos eventos fotografados, a série propõe ressignificações também do ponto de vista formal: Vicente tece uma analogia visual entre fotografia e hipermetropia – pontos de cor parecem aleatórios quando vistos de perto mas, compactados pelo olhar a média distância, formam imagens mais ou menos distintas. Além disso, devido ao tratamento dado, as imagens têm impressão similar à de outdoors ou cartazes do tipo lambe-lambe. O uso das retículas de impressão offset em grandes formatos transpõe a investigação poética para o universo da comunicação visual urbana e confere a eventos remotos uma presença quase trivial. Não por acaso, provocadoras imagens da série participam da primeira edição da Street Biennale, projeto de intervenções urbanas idealizado pelo curador francês Jeremy Planchon. em meio à Bienal de São Paulo de 2010.

 

Como em produções anteriores do fotógrafo, as imagens da exposição confundem sem obviedade o limite entre o real e aquilo que pode ter sido adulterado digitalmente. O estranhamento causado por essas fotografias corresponde a uma espécie de duelo ontológico entre o referencial e a imagem resultante – esta é gerada necessariamente por aquele, mas o produto artístico ultrapassa qualquer correspondência.

Projeto Parede MAM-SP

 

Pli selon pli – Dobra sobre dobra - para Pierre Boulez.

Autor: Vicente de Mello

Pli selon pli é o nome da obra musical do compositor e maestro francês  Pierre Boulez, composta entre 1957 e 1962, para soprano e orquestra, que conheci em 2005 e que me deixou fascinado pela similaridade sonora com uma seqüência fotográfica, como pequenos flashes em filmes velados com pequenas interferências de luz, breves e marcantes.

 

Desde este tempo fiquei a procurar uma seqüência fotográfica que pudesse criar um movimento sonoro que caracterizasse notas musicais que estariam sobre uma partitura.  Foi em 2008 durante uma residência de artista em Varsóvia, Polônia, que encontrei um simples elemento que precisava para materializar Pli selon pli: os postes da cidade, que fotografados em diferentes inclinações, revelando um desenho comum que beirava o “cartoon” (figuras) ou as partes de um móbile (pela flutuação contra o céu).

Fotografei os postes em 26 variações diferentes contra um céu neutro, para reduzi-lo a sensação do traço, do desenho em forma plana.

 

Fui buscar a possibilidade de duplicá-los com a finalidade de realizar um grande desenho, que por seqüência destas imagens fosse entendido como uma partitura musical, a ser visualizado em grande escala, para tal a impressão fotográfica seria muito purista, queria uma seqüência mais áspera, então remeti a uma antiga vontade de imprimir fotos na técnica de cartazes de rua, em poster Lambe – Lambe. Atrai-me muito visualmente o resultado da retícula, sempre que encontro um colado em espaço público, gosto de ver os pontos que parecem aleatórios de perto e exatamente compactos de longe, para mim é uma analogia com a hipermetropia. Somei ao fato Lambe – Lambe, outra referência muito forte na minha infância que era o grude, goma caseira com farinha de trigo e água, que usei muito para colar todos os meus álbuns de figurinhas (as autocolantes nem pensavam em existir), esta cola é muito próxima a cola utilizada para afixá-los. No MAM-SP, a composição original será reproduzida no corredor.

 

Pli selon Pli, pertence à série fotográfica Quantas ASAS tem um pixel? Que são fotografias realizadas com câmera digital de bolso, que proporciona uma liberdade à fotografia, transformando o modo de fotografar e seus valores, tocando na validade desta mídia que é instigante como princípio, meio e fim. A digital engana, em todos os sentidos.

     

Sempre considerei o Projeto Parede instigante, ele é uma porta exclusiva que se abre na trajetória de um artista, é como se toda a liberdade que as artes defendem na sua operação de existência, encontrassem uma porta para o improviso, como é na música, como é em Pli selon pli, onde Pierre Boulez começou a considerar novos caminhos para sua própria obra. Outra questão bem pertinante é que o Lambe - Lambe fica em lugares de passagem, nas ruas, e na verdade o Projeto Parede é um espaço de passagem de trânsito humano. Você pode percebe-lo ou não, mas ele esta lá.

 

O resultado desta montagem tem uma modulação que referencia as criações em azulejo de Athos Bulcão, pois utiliza a economia de formas com criações ritmicas, característica do período modernista da arquitetura brasileira.

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